Durante uma semana inteira, uma equipe assistiu à programação da televisão norte-coreana, buscando entender o que realmente chega aos olhos e ouvidos dos cidadãos do país mais fechado do mundo. A experiência revelou um universo controlado, repetitivo e repleto de propaganda, onde até desenhos infantis falam sobre esterco e a música serve para exaltar o líder supremo. A seguir, um mergulho nesse mundo paralelo.
A televisão na Coreia do Norte não é só diferente. Ela parece pertencer a outro planeta. Uma realidade paralela onde tudo gira em torno de um único nome: Kim. Uma equipe da ABC News assistiu e viu muitas coisas estranhas.
Logo ao ligar a Televisão Central Coreana (KCTV), o telespectador se depara com os rostos do “Querido Líder” Kim Jong-il e de seu pai Kim Il-sung, estampados num fundo vermelho.
Nenhum texto, nenhum som. Apenas os rostos. É o aviso silencioso de que ali, naquela tela, quem manda são os Kims.
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Sem zapping, sem escolha, sem descanso
Na Coreia do Norte, não existe algo como um “guia de TV“. A programação é enxuta e previsível. A KCTV transmite cerca de sete horas por dia.
Os outros canais, como a Mansudae TV ou a Televisão Educacional e Cultural, aparecem de forma esporádica — e muitas vezes silenciosa — graças à falta de energia ou de recursos.
A rotina começa às 15h com uma introdução simples do que será mostrado.
Quem está assistindo, porém, já sabe o que vem: adoração aos Kims, propaganda socialista, notícias selecionadas, desenhos infantis com esterco e músicas patrióticas que grudam na cabeça.
Sem concorrência, sem limites
Não há competição. Nenhum outro canal para mudar. E com isso, o conteúdo é transmitido sem nenhuma preocupação com o gosto do espectador.
A programação é pensada para um único objetivo: fortalecer o culto à personalidade de Kim Jong-un e manter viva a ideologia socialista do regime.
A estrutura das reportagens segue um padrão rígido. Primeiro, elogios ao líder supremo. Depois, notícias “econômicas”, geralmente sobre fábricas ou fazendas coletivas. Na sequência, críticas aos Estados Unidos e à Coreia do Sul. E, por fim, uma música patriótica para animar o encerramento.
Uma semana de esterco, meias e fábricas
Durante uma semana inteira de observação, a programação girou em torno da produção de esterco nas fazendas, do orgulho de trabalhadores em fábricas e do papel quase divino do líder norte-coreano.
Reportagens exaltavam camponeses de Anbyeon e Uiju que já estavam com toneladas de fertilizante preparado para a primavera. Já as fábricas, como uma de meias em Pyongyang, eram descritas como centros de excelência tecnológica. Qualquer visita de Kim a esses locais virava manchete principal.
Na sexta-feira, por exemplo, Kim visitou uma fábrica de medicamentos acompanhado de sua esposa. Nenhuma imagem em vídeo, apenas fotos. Mesmo assim, a reportagem ocupou boa parte do telejornal, narrando como o líder orientava os trabalhadores a buscar mais qualidade.
Os Estados Unidos são o inimigo, sempre
Um dos temas preferidos da KCTV é o “imperialismo americano”. Todos os dias, há pelo menos uma crítica direta ou indireta aos Estados Unidos. Trump é chamado de “lunático de guerra”, a Casa Branca é acusada de sabotar a paz na Península Coreana, e qualquer exercício militar vira “ameaça catastrófica”.
Até a gripe comum vira arma de propaganda. Na terça-feira, a TV norte-coreana noticiou surtos em países como EUA, Alemanha e Tunísia, com um tom alarmista: “cidadãos de muitos países perderam a vida”.
A mensagem subliminar é clara: fora da Coreia do Norte, tudo é caos. Aqui, tudo é ordem, trabalho e felicidade.
O país mais perfeito do mundo (segundo ele mesmo)
Na narrativa oficial, a Coreia do Norte é um paraíso socialista. A capital Pyongyang é retratada como moderna, limpa e repleta de escolas e fábricas de ponta. Não há fome, não há crime, não há injustiça.
Mas o contraste com a realidade é gritante. Enquanto o canal exibe fábricas supostamente modernas, o país enfrenta sanções, escassez de alimentos e um sistema de saúde precário. Aparentemente, isso não cabe no roteiro da TV estatal.
Um musical ininterrupto de propaganda
Sem comerciais, os intervalos da programação são preenchidos com canções de propaganda. E não são músicas improvisadas. São bem produzidas, com melodias cativantes e letras que exaltam o exército, o partido e, claro, o líder.
Na terça-feira, por exemplo, foi exibido o videoclipe de “Guarde o Partido Central com a Vida”. Soldados marcham com orgulho. A bandeira tremula ao fundo. A música repete versos sobre sacrifício, honra e fidelidade ao Partido dos Trabalhadores.
A letra aparece na tela em estilo karaokê, permitindo que o espectador cante junto. E muitos provavelmente o fazem.
Animações que ensinam a obedecer
Mesmo os desenhos animados exibidos às crianças carregam mensagens políticas. São produções antigas, com traços que lembram os anos 1980, e narrativas que exaltam o esforço coletivo, a obediência e a importância de seguir os planos do líder.
Em um desenho chamado “Keep in Mind”, o enredo era sobre escovar os dentes corretamente. Mas tudo envolto em um tom militarizado e com uma estética austera.
Outro, chamado “A História dos Irmãos Scale”, tinha balanças, frascos e microscópios como personagens. A missão deles era preparar a plantação de feijão… com muito esterco, claro. A mensagem era clara: siga as ordens, trabalhe duro e confie no planejamento central.
O âncora que parece uma autoridade divina
O estilo do noticiário é outro espetáculo à parte. O apresentador fala com uma voz firme, pausada e quase autoritária. Ele não lê notícias. Ele faz discursos.
Na quinta-feira, por exemplo, uma “declaração oficial” à Coreia do Sul durou 15 minutos. Nenhum vídeo, nenhuma foto. Apenas o rosto do apresentador e sua voz monocórdia, lendo uma longa advertência sobre a ameaça dos Estados Unidos e a necessidade de manter a soberania norte-coreana.
O mais surreal é que tudo isso é feito com seriedade absoluta. Não há ironia, não há espaço para dúvidas. A TV norte-coreana é uma máquina de crença.
Nenhum elogio ao exterior. Apenas desgraças
Durante toda a semana de observação, não houve um único elogio a outro país. Em vez disso, o canal listava tragédias pelo mundo: protestos nos EUA, desastres climáticos na Alemanha, surtos de doenças na Ásia e na Europa.
Tudo isso reforça a ideia de que o mundo exterior é perigoso, instável e corrupto. A mensagem implícita: agradeça por viver aqui.
Uma lavagem cerebral diária e repetitiva
Depois de cinco dias assistindo à programação da KCTV, fica evidente o verdadeiro papel da televisão no país: não é informar, não é entreter — é doutrinar.
Mesmo os conteúdos mais inocentes são usados como instrumentos de controle. A música pop é propaganda. O noticiário é propaganda. O desenho animado é propaganda. Até o tempo é propaganda.
A programação martela as mesmas ideias em ciclos intermináveis: os Kims são heróis, o socialismo é o caminho, o mundo está em colapso, e só a Coreia do Norte é segura.
E no final… você canta junto
Pode parecer absurdo, mas depois de alguns dias, até um estrangeiro começa a cantarolar as músicas, repetir os slogans.
É como se a TV criasse uma bolha onde a lógica do regime começa a fazer sentido — mesmo que seja só por alguns minutos.
É isso que você vê se assistir à TV norte-coreana por um dia. Agora imagine viver uma vida inteira com esse conteúdo.
A televisão na Coreia do Norte não é apenas um canal. É o próprio Estado falando com seus cidadãos. E ele fala alto. Todos os dias.