Em plena Guerra Fria, Brasil e Alemanha Ocidental firmaram um acordo nuclear monumental. Ele prometia independência energética ao Brasil, mas acendeu o alerta mundial sobre uma possível corrida armamentista e um “plano secreto” para a bomba atômica.
Em 27 de junho de 1975, o Brasil, sob regime militar, e a Alemanha Ocidental am o ambicioso acordo nuclear Brasil-Alemanha. Batizado de “Negócio do Século”, o pacto previa a construção de oito usinas nucleares e a transferência da tecnologia do ciclo completo do combustível nuclear. Fechado em um cenário de crise energética e tensões da Guerra Fria, o acordo alimentou os sonhos brasileiros de autonomia tecnológica e status de potência.
Contudo, gerou forte oposição internacional, especialmente dos EUA, que temiam a proliferação de armas e a possível fabricação de uma bomba atômica brasileira, uma suspeita alimentada por um programa nuclear paralelo conduzido secretamente pelas Forças Armadas.
Por que o Brasil buscou o acordo nuclear com a Alemanha em plena Guerra Fria?
O Brasil da década de 1970 vivia o chamado “milagre econômico”. Contudo, a crise do petróleo de 1973 expôs sua grande vulnerabilidade energética. A busca por alternativas tornou-se urgente. O regime militar via no domínio da tecnologia nuclear uma chance de garantir a segurança energética. Além disso, almejava impulsionar o desenvolvimento tecnológico. O objetivo era afirmar o Brasil como potência emergente.
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A desconfiança em relação aos Estados Unidos como fornecedor nuclear também crescia. Em 1974, os EUA suspenderam novos contratos de fornecimento de urânio enriquecido. O Brasil, que já se opunha ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) desde 1968, considerando-o discriminatório, viu a decisão americana como uma tentativa de frear seu programa. Essa conjuntura levou o governo do General Ernesto Geisel a procurar um novo parceiro. A Alemanha Ocidental surgiu como a nação disposta a transferir a tecnologia completa do ciclo do combustível, prometendo a sonhada independência.
8 usinas, ciclo completo do combustível e a polêmica tecnologia alemã
O acordo nuclear Brasil-Alemanha era vasto. Previa a construção de oito usinas nucleares PWR, cada uma com cerca de 1.300 MW. As primeiras seriam Angra II e Angra III. O ponto mais crucial e controverso era a transferência da tecnologia para o ciclo completo do combustível. Isso incluía prospecção e mineração de urânio, enriquecimento, fabricação de combustível, operação de reatores e o sensível reprocessamento de combustível irradiado, que permite extrair plutônio.
A estatal Nuclebrás coordenaria o lado brasileiro. A alemã Kraftwerk Union (KWU), da Siemens, lideraria o consórcio alemão. Empresas binacionais seriam criadas, como a NUCLEP, para fabricar componentes pesados. Contudo, uma escolha tecnológica gerou grande polêmica: o método de enriquecimento por “bico de jato” (jet-nozzle). Pressionada pelos EUA, a Alemanha ofereceu essa tecnologia experimental, de alto consumo energético e não comprovada industrialmente, em vez da ultracentrifugação, mais eficiente. O Brasil aceitou, assumindo um risco tecnológico considerável.
A feroz oposição dos EUA ao acordo nuclear Brasil-Alemanha
A do acordo nuclear Brasil-Alemanha causou forte repercussão internacional. Os Estados Unidos lideraram a oposição. Washington temia que o Brasil, não signatário do TNP, usasse a tecnologia para desenvolver armas nucleares. A transferência de tecnologias de enriquecimento e reprocessamento era vista como um risco inaceitável.
O governo Ford (1974-1977) tentou uma abordagem diplomática inicial. Já o governo Carter (1977-1981) intensificou a pressão. Carter criticou abertamente o acordo e usou argumentos de direitos humanos para pressionar o Brasil. As relações bilaterais se desgastaram, culminando no cancelamento do acordo militar Brasil-EUA em 1977. A oposição americana também tinha um componente econômico, desafiando o domínio de suas empresas no mercado nuclear.
Em resposta ao teste nuclear indiano de 1974 e ao acordo Brasil-Alemanha, foi fortalecido o Grupo de Fornecedores Nucleares (NSG), que impôs diretrizes mais rígidas para exportações nucleares, dificultando a implementação do pacto. A Argentina, rival regional com seu próprio programa nuclear, observava com desconfiança, intensificando a percepção de uma corrida nuclear sul-americana.
O programa nuclear paralelo e as intenções militares do Brasil
Enquanto o acordo nuclear Brasil-Alemanha enfrentava obstáculos, um programa clandestino ganhava força: o Programa Autônomo de Tecnologia Nuclear (PATN), ou “programa paralelo”. Iniciado formalmente em 1979, mas com raízes anteriores, ele respondia às frustrações com o acordo oficial. A inviabilidade do “jet-nozzle”, a lentidão e os custos crescentes do pacto com a Alemanha motivaram essa via secreta.
Controlado pelos militares e fora das salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o PATN buscava autonomia irrestrita no ciclo do combustível. Seus objetivos incluíam propulsão nuclear naval e, potencialmente, a capacidade de produzir explosivos nucleares. A Marinha focou na ultracentrifugação (Projeto Ciclone), a Aeronáutica no enriquecimento por laser (Projeto Solimões) e o Exército na produção de grafita nuclear e reatores de plutônio (Projeto Atlântico).
A descoberta em 1986 de um poço de testes na Serra do Cachimbo (PA) confirmou as intenções mais amplas. O fechamento simbólico desse poço em 1990 marcou o fim oficial das atividades com potencial bélico. O programa paralelo não era um “plano secreto” dentro do acordo alemão, mas uma via distinta e autônoma.
O legado controverso do acordo nuclear Brasil-Alemanha
A implementação do acordo nuclear Brasil-Alemanha ficou muito aquém do planejado. A tecnologia “jet-nozzle” fracassou industrialmente. Os custos dispararam em meio à crise econômica brasileira dos anos 80. Pressões internacionais e críticas internas minaram o programa. Dos oito reatores, apenas Angra II (que entrou em operação em 2001) e Angra III (ainda inacabada) foram iniciados. Os planos para usinas de enriquecimento e reprocessamento sob o acordo foram abandonados.
Apesar do colapso parcial, o legado é complexo. A NUCLEP, criada para fabricar componentes pesados, tornou-se um polo tecnológico importante, inclusive para o programa de submarinos da Marinha. Crucialmente, o domínio do enriquecimento de urânio por ultracentrifugação não veio do acordo alemão, mas do programa paralelo.
Paradoxalmente, as dificuldades do acordo oficial e a existência do programa paralelo conduziram o Brasil, após a redemocratização e em cooperação com a Argentina (com a criação da ABACC), a aderir plenamente ao regime de não proliferação, incluindo o TNP em 1998. O acordo nuclear Brasil-Alemanha ilustra os desafios da transferência de tecnologia sensível e as intrincadas relações entre ambição nacional, pressões globais e realidades técnicas e econômicas.