Projetos como o Complexo Solar Noor em Marrocos e o Xlinks demonstram o potencial de uma mega fazenda solar no Saara para abastecer a Europa, mas enfrentam desafios técnicos, econômicos e geopolíticos
A ideia de aproveitar a vasta energia solar do Deserto do Saara para abastecer milhões de pessoas na Europa representa uma oportunidade transformadora para a cooperação energética e a transição para fontes limpas. Uma mega fazenda solar nesta região poderia redefinir as relações energéticas entre os continentes.
Projetos emblemáticos em Marrocos e na Tunísia já estão em andamento ou em planejamento avançado, utilizando tecnologias de ponta para geração e transmissão de energia. Entenda o potencial, a tecnologia, os desafios e as implicações desses ambiciosos empreendimentos.
O potencial energético do Saara
O Deserto do Saara possui alguns dos mais elevados níveis de irradiação solar do planeta e vastas extensões de terra com poucos usos alternativos. Essa combinação cria um potencial energético gigantesco. A localização de Ouarzazate, em Marrocos, por exemplo, registra uma Irradiação Normal Direta (DNI) de aproximadamente 2.635 kWh/m²/ano.
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Este potencial alinha-se com as metas da União Europeia de diversificar suas fontes de energia, reduzir a dependência de combustíveis fósseis e reforçar sua segurança energética, conforme planos como o REPowerEU e a iniciativa Global Gateway. A ideia não é nova, remontando ao projeto Desertec, mas as iniciativas atuais, como Xlinks e TuNur, focam em acordos bilaterais mais pragmáticos.
Complexo Solar Noor, o gigante operacional e suas lições
O Complexo Solar Noor Ouarzazate, em Marrocos, é uma das maiores instalações de energia solar concentrada (CSP) do mundo e um marco do compromisso marroquino com as renováveis. Com uma capacidade total de 580 MW, o complexo é dividido em quatro fases (Noor I, II, III e IV), que combinam tecnologia CSP com armazenamento de energia térmica em sais fundidos e tecnologia fotovoltaica (PV).
O objetivo primário do complexo é abastecer o mercado doméstico de Marrocos, mas o potencial de exportação para a Europa foi uma consideração desde o início. O projeto gerou milhares de empregos na construção e centenas na operação, com foco em conteúdo local. No entanto, o elevado consumo de água da tecnologia CSP em uma região árida é um desafio ambiental significativo.
A mega fazenda solar Xlinks (Marrocos-Reino Unido) e o TuNur (Tunísia)
Projeto Xlinks Marrocos-Reino Unido: Esta é uma das propostas mais ambiciosas, visando uma capacidade de geração de 11,5 GW de energia solar e eólica em Marrocos. A energia seria transportada por um cabo submarino HVDC de 3,6 GW e aproximadamente 4.000 km de extensão até o Reino Unido. O custo é estimado em US$30 bilhões, e o projeto foi designado como “nacionalmente significativo” pelo governo britânico. No entanto, enfrenta críticas sobre “colonialismo verde”.
Projeto TuNur (Tunísia): A estratégia deste projeto evoluiu. Inicialmente focado na exportação de eletricidade de uma mega fazenda solar de 4,5 GW para Itália, Malta e França, agora inclui também a produção de hidrogênio verde, amônia e metanol para exportação, alinhando-se com a Estratégia Nacional de Hidrogênio Verde da Tunísia. O projeto também enfrenta críticas socioeconômicas e ambientais, especialmente sobre o uso da terra e da água.
Geração e transmissão de longa distância
A viabilidade desses projetos depende de tecnologias robustas. Na geração, há uma disputa entre:
Energia Solar Concentrada (CSP): Com a vantagem de integrar armazenamento térmico, permitindo produção despachável, mas com maior consumo de água e custos mais elevados.
Energia Fotovoltaica (PV): Com um Custo Nivelado da Energia (LCOE) significativamente menor e mínimo consumo de água, tornando-se cada vez mais competitiva, especialmente quando acoplada a sistemas de armazenamento em baterias (BESS).
Para o transporte da energia, a tecnologia de Corrente Contínua de Alta Tensão (HVDC) é a solução. Ela permite a transmissão de grandes blocos de energia por milhares de quilômetros com perdas muito menores que a corrente alternada (AC). Projetos como o Viking Link (Reino Unido-Dinamarca), com 764 km, já demonstram a eficácia desta tecnologia.
O futuro da energia Saara-Europa, viabilidade, riscos e a busca por parcerias equitativas
A viabilidade econômica desses projetos depende da competitividade do LCOE da energia importada em relação às renováveis na Europa, o que exige custos de geração muito baixos na África. O financiamento é um desafio, geralmente envolvendo Parcerias Público-Privadas (PPPs) e o apoio de Instituições Financeiras de Desenvolvimento (IFDs).
Os riscos são multifacetados: técnicos (instalação e manutenção de cabos submarinos), financeiros, geopolíticos e a necessidade de manter uma licença social para operar. É crucial que esses projetos sejam estruturados como parcerias equitativas, garantindo benefícios socioeconômicos para os países do Norte de África e abordando de forma transparente as preocupações sobre “colonialismo verde”. O sucesso dependerá de um equilíbrio entre ambição tecnológica, viabilidade econômica e, fundamentalmente, justiça social e ambiental.